Eles não sabem contar, não diferenciam cores, não conhecem arte ou mitos, não entendem ficção, não acreditam em nenhum deus. Vivem no agora, sem futuro, sem passado. Esses são os pirarrãs: 150 a 350 Ãndios que vivem na selva amazônica e desafiam nosso entendimento da linguÃstica moderna.
Os pirarrãs ou piraãs, também chamados de pirahãs ou mura-pirahãs, são um povo indÃgena brasileiro de caçadores-coletores, monolÃngues e semi-nômades, que se destacam de outras tribos pela diferença cultural e linguÃstica.
Antes mesmo de nascer, ainda no ventre materno, os pirarrãs recebem um primeiro nome, que eles acreditam ser responsável pela criação de seus corpos. Durante a vida, recebem nomes de seres que habitam camadas superiores e inferiores do cosmos, responsáveis pela criação de suas almas e destinos, e também de inimigos de guerra.
Linguagem
A lÃngua pirarrã é um lÃngua da famÃlia linguÃstica mura. É a única lÃngua do grupo mura ainda não extinta, sendo que todas as demais desapareceram nos últimos séculos. Essa lÃngua não tem nenhuma relação com qualquer outra lÃngua existente. Havia cerca de trezentos e cinquenta falantes em 2004, distribuÃdos em oito aldeias ao longo do rio Maici.
Apresenta caracterÃsticas peculiares, não encontradas em outras formas de expressão oral. Foi identificada e teve sua gramática elaborada em 1986 pelo linguista estadunidense Daniel Everett em cerca de doze artigos. Everett viveu entre os Pirarrã por sete anos, dos anos 1970 aos 1980.
Entre suas peculiaridades, destacam-se:
- Uma das menores quantidades de fonemas entre os idiomas existentes. Identificam-se os sons de apenas três vogais (A, I e O) e seis consoantes: G, H, S, T, P e B;
- A pronúncia de muitos fonemas depende do sexo de quem fala;
- Apresenta dois ou três tons, quantidade discutida entre estudiosos;
- O falar pirarrã pode ser expresso por música, assobios ou zumbidos (como “M†com lábios fechados);
- Apenas alguns dos homens, nunca mulheres, conseguem se expressar em nheengatu ou em português;
- Sentenças muito limitadas, sendo o único idioma sem orações subordinadas;
- Não tem numerais, apenas a noção do unitário (significando também “pequenoâ€) e de muito. Sua cultura e seu modo de vida, como caçadores e coletores, não exige conhecimento de numerais (um trabalho recente de Everett indica que a lÃngua não trata nem mesmo de “um†e “doisâ€; não usam números, mas quantidades relativas);
- Não há palavras para definir cores, exceto “claro†e “escuroâ€, embora isso seja discutido entre diversos autores;
- Tudo é falado no presente, não há o tempo futuro, nem o passado. Trata-se de um povo, portanto, sem mitos da criação;
- Não tem termos que identifiquem parentesco, descendência. A palavra para Pai e Mãe é uma única;
- Os pronomes pessoais parecem ter-se originado na lÃngua nheengatu, uma lÃngua franca de origem tupi.
Daniel Everett: sete anos entre os Pirarrãs
Entre as coisas que separam os homens dos outros animais, estão as sutilezas da linguagem. Os animais até são capazes de transmitir mensagens simples – em geral relacionadas a comida, sexo ou disputa de território –, porém não conseguem encaixar uma mensagem dentro de outra.
Por exemplo, um golfinho treinado pode transmitir a mensagem “A bola está na piscina†ou “Pegue a bolaâ€, mas não é capaz de juntar as duas expressões dizendo “pegue a bola que está na piscinaâ€. Esse é um atributo exclusivamente humano que os linguistas chamam de recursividade – que, salvo casos de deficiência mental, é considerado um denominador comum a todos os indivÃduos da nossa espécie.
O que aconteceria se um grupo humano não dominasse isso? Essas pessoas seriam menos humanas que outras?
O pesquisador americano Daniel Everett chegou à tribo na década de 1970 como um missionário cristão com a missão de converter os Ãndios. Nunca conseguiu. Everett fazia parte de uma organização internacional que espalha a palavra de Deus por meio da tradução da BÃblia para lÃnguas sem escrita. Mas foi a falta da tal recursividade que ele identificou nos indÃgenas que o pôs em conflito com seus colegas linguistas.
Ele diz que os Ãndios não são recursivos pelo que chamou de “PrincÃpio da Experiência Imediataâ€. O nome é mais complicado do que a coisa em si: os pirarrãs só vivem e falam do aqui-agora. Fazem apenas sentenças relacionadas ao momento em que estão falando, aos fatos vistos por eles. “As sentenças dos pirarrãs contêm somente situações vividas pelo falante ou testemunhadas por alguém vivo durante a vida do falanteâ€, define Everett em um de seus artigos. Por isso eles têm problema com as abstrações e tudo o que resulta delas: cores, números, mitos, ficção e a bendita recursividade. Também é isso que faz com que os pirarrãs, ao contrário de todas as outras comunidades linguÃsticas já estudadas, não aprendam a contar em outro idioma. “Eles não querem saber de nada que esteja fora do seu mundoâ€, afirma Everett.
Outros linguistas rebatem: “A contagem ‘1, 2, bastante’, por exemplo, é tÃpica de vários outros indÃgenasâ€, afirma Maria Filomena Sândalo, linguista da UNICAMP (Campinas, Brasil) que fez sua dissertação de mestrado sobre a tribo. “Isso não quer dizer que eles não reconheçam quantidades. Eles simplesmente fazem recortes diferentes da realidade, como qualquer outra lÃnguaâ€.
A professora argumenta que, enquanto esteve com os pirarrãs, encontrou uma linguagem tão complexa e recursiva como qualquer outra. Ela interessou-se pela questão pirarrã e, junto com dois outros pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA) e da Universidade Harvard (EUA), analisou os dados colhidos por Everett. Em 2007, o grupo publicou um artigo concluindo que a lÃngua é normal. “Ela não é inexplicável ou especial. É tão interessante quanto uma lÃngua de qualquer outro lugar do mundo. Não tem essa história de experiência imediata ou falta de recursividadeâ€, diz a professora.
O linguista e filósofo estadunidense Avram Noam Chomsky, um dos maiores Ãcones dessa ciência, argumenta que os pirarrãs não são um “contra-exemplo†à gramática universal (termo usado no último século para a teoria do componente genético que habilita os humanos a se comunicar). Como os pirarrãs não são diferentes geneticamente do resto da humanidade, não há nada de extraordinário aÃ.
Cultura e crença
Os pirarrãs concebem o tempo como uma alternância entre duas estações bem marcadas, definidas pela quantidade de água que cada uma possui: piaiisi (época da seca) e piaisai (época da chuva). O modo de vida é simples, baseado em caça, coleta e pesca, sem traços de prática agrÃcola.
Outra questão curiosa dos Pirarrãs é a ausência de uma ideia criacionista, algo literalmente único entre povos de cultura primitiva. Eles não acreditam em nada que não possa ser provado, visto ou sentido. Logo, não possuem quaisquer deidades ou mitos de criação, e para eles o céu e a terra sempre existiram. No entanto, acreditam em espÃritos menores na forma de coisas no ambiente, segundo experiência pessoal de alguns, e tem uma ideia de cosmologia baseada em camadas existenciais, sendo eles corpos em uma delas (hiaitsiihi).
Enquanto viveu entre eles, o missionário Daniel Everett tentou evangelizar a tribo. Segundo ele, os indÃgenas perderam o interesse em Jesus quando descobriram que Everett nunca o viu de fato. Seu constante contacto com este tipo de pensamento acabou o transformando. “Os pirarrãs me modificaram profundamente. Eu era um missionário que evangelizava e hoje sou ateuâ€, disse.
Postada por JJ Pindado Verdugo