Pobres e desprezados
Um livro de recomendabilÃssima leitura acaba de sair na França, intitulado Le Mépris du Peuple, o desprezo do povo. SubtÃtulo: de como a oligarquiafez da sociedade seu refém. Autor, Jack Dion, jornalista de origem esquerdista.
Escreve Dion: “Quando os partidos que chegam ao poder se tornam instrumentos de defesa doestablishment, o povo transforma-se em inimigo e passa a simbolizar um perigo potencialâ€. O autor aponta o emprego enganoso do termo populismopara negar alternativas ao liberalismo, ou seja, à ortodoxia neoliberal, como único caminho destinado a preservar a democracia.
Dion recorda que há 40 anos o então chanceler alemão, Helmut Schmidt, socialista, dizia que os lucros de hoje serão os investimentos de amanhã e os postos de trabalho de depois de amanhã. Quarenta anos após, são os dividendos de amanhã e o desemprego de depois de amanhã. E em lugar de Schmidt, a Europa e o mundo padecem Angela Merkel.
Caso voltasse seus olhos para o Brasil, Dion anotaria, como sinônimo de populismo, outro termo esbanjado, chavismo, eventualmente associado acomunismo, em um paÃs cujos burguesotes em 2010 qualificavam a candidata Dilma Rousseff como guerrilheira. Com o estÃmulo e o apoio dos escribas da mÃdia nativa, sem deixar de sublinhar que a palavra escriba não indica lida fácil com o vernáculo.
Dion escreve um vigoroso libelo contra a esquerda do ex-Primeiro Mundo, insensÃvel e desarmada diante da concentração da riqueza nas mãos de uma minoria cada vez mais diminuta, fenômeno de maior evidência nos Estados Unidos, onde, faz seis anos, 95% do crescimento é confiscado por 1% da população. E haja Tea Party. Pois saiba Dion que nós temos o nosso Tea Party, promovido pela mÃdia nativa, com o beneplácito, quando não da colaboração de quem já se disse de esquerda, ou ainda se diz, impávido.
Sejamos claros: o primeiro governo de centro-esquerda na história do PaÃs foi o de Lula. Houve, a precedê-lo, a Carta aos Brasileiros e, após a posse em janeiro de 2003, a entrega do Banco Central a Henrique Meirelles. Logo, porém, polÃticas foram praticadas para tirar da miséria mais de 30 milhões de cidadãos. Lula liquidou a dÃvida externa, encheu as burras do Estado, inaugurou uma polÃtica internacional independente. Ótimo governo que conseguiu escapar aos dias piores da crise econômica global.
Esta, contudo, não poupou Dilma, e nem poderia. Inútil, além de hipócrita ou estulto, negar que o recrudescimento da crise foi determinante na baixa progressiva do nosso PIB. Erros foram cometidos, inegavelmente, para piorar a situação. O descaso governista em relação à indústria, antes de mais nada. Mesmo assim, parte das polÃticas sociais cultivadas por Lula foi mantida, e algumas até reforçadas.
Foi quanto bastou para justificar o apoio de CartaCapital à candidatura da presidenta ao segundo mandato, na certeza de que uma vitória tucana nos devolveria ao final do século passado, quando FHC reinava. Em meio à s vicissitudes, esperávamos por um governo de centro-esquerda, aquilo que o de hoje não é, submisso ao mercado, indiferente ao rentismo dominante, em retirada nas polÃticas sociais, refém de predadores do porte mais primário, para não dizer primitivo, de Eduardo Cunha e Renan Calheiros.
Há tempo CartaCapital reconhece a necessidade de um reajuste fiscal, permite-se, no entanto, a seguinte dúvida: pode a manobra ser da responsabilidade de um discÃpulo de Angela Merkel? Não dos mais atilados, diga-se, seu depoimento de terça 31, no Senado, é uma obra-prima de incongruências. Se Dion encarasse o Brasil, não deixaria de verificar que por aqui está em curso um ataque à própria razão, não bastassem as mesuras a quem faz o mal do mundo. Para combater a criminalidade, cogita-se de atirar menores nas cadeias superlotadas. Para combater a corrupção, pretende-se aprisionar réus a partir da condenação em primeira instância. Meu professor de Direito Romano na Faculdade do Largo de São Francisco, Alexandre Correa, padeceria de um sobressalto interior, talvez fatal.
E o ministro da Justiça opina a respeito? Silêncio condescendente. Em compensação, contamos na pasta da Agricultura com uma latifundiária, a representar aquele 1% que detém a propriedade de 50% das terras agriculturáveis. Os ricos erguem seus palácios, blindam seus carros, exigem valet parking nos logradouros públicos e seguranças engravatados enquanto circulam de bermudas e havaianas. Ao mesmo tempo, 40% do território nacional não é alcançado pelo saneamento básico e mais de 60 mil brasileiros morrem assassinados anualmente. E nada disso fere a consciência dos demais. Alegremente desprezam-se os pobres, e estes deixam-se desprezar.