Majur Harachell Traytowu lidera a comunidade Apido Paru, em MT
Foto pessoal/divulgação
Quando tinha 29 anos, Majur Harachell Traytowu estava concentrada em avançar em sua transição para o gênero feminino e iniciar o tratamento com hormônios que poderia mudar seu corpo para a forma com que sonhava. Mas um mal súbito do seu pai, o cacique da aldeia bororo Apido Paru, fez com que uma outra mudança chegasse primeiro em sua vida: a liderança.
“Eu nunca tive essa ideia, essa vontade de liderar a comunidade. Só que eu sempre tive que acompanhar mais esse movimento com minha mãe de buscar as coisas [fora da aldeia]. Então, eu já estava preparada”, conta Majur, de 30 anos, em entrevista para a Agência Brasil, na Semana da Visibilidade Trans. Entre os irmãos, ela acabou escolhida para suceder o pai.
“Eles achavam que eu tinha mais facilidade para lidar com os brancos e também para a organização da comunidade e para buscar coisas na aldeia. Por isso, escolheram a mim.”
Majur ficou conhecida, em 2021, como a primeira mulher transexual a liderar uma aldeia indígena. “A gente fez um breve estudo, e parece que existe ‘cacica’ [feminino de cacique]. Então, estão me tratando mais como ‘cacica'”, conta ela, que assim prefere ser chamada.
O desafio de liderar as mais de 100 pessoas da comunidade Apido Paru, em Rondonópolis, em Mato Grosso, já era dificultado pelo ano mais letal da pandemia de covid-19 e ficou ainda maior quando ela conseguiu iniciar a medicação hormonal para a transição de gênero.
“Eu sentia muito estresse e, para mim, qualquer coisinha na minha vida era motivo de briga e discussão. Então, foi muito pesado, logo nos três primeiros meses de uso hormonal. Eu fiquei tão estressada porque tinha que lidar com a comunidade e com a reação do medicamento no meu próprio corpo. Mas agora estou tranquila”, conta Majur.
Respeitada
Uma dificuldade que ela conta não ter enfrentado foi transfobia dentro da comunidade. “Nunca ninguém me questionou [como líder]. Nunca falaram nada. Nunca tive esse problema”, afirma ela, que considera que o respeito às pessoas trans é uma realidade no povo bororo, mas não é uma constante entre todos povos indígenas.”Vejo que tem povos com preconceitos com gays, lésbicas e mulheres trans. Falo de como sou tratada pelo meu povo.”
A aldeia Apido Paru faz parte de um conjunto com outras aldeias na Terra Indígena Bororo, cada uma com seu cacique. “A reserva tem um cacique central, que é o cacique dessa aldeia gigantesca. E cada aldeia tem seu cacique. Ele não está acima de mim. Todo mundo tem seu posto. Ele tem o dele, e eu tenho o meu. Então, quando ele precisa de alguma coisa, ele me liga, me manda mensagem, me avisa. A gente conversa muito”, conta ela. “Entre eles, também sempre fui respeitada.”
Já fora da aldeia, houve situações de discriminação e deboche. “Uma vez, eu estava na rua, e duas senhoras falaram comigo: ‘Nossa, não sabia que tinha ‘índio gay‘, ‘índio viado’. Mas eu sou uma pessoa bem tranquila e relevo muitas coisas”.
Desafios
Como indígena e LGBTQIA+, ela lembra que houve um clima de medo entre as duas minorias com o início do governo de Jair Bolsonaro na Presidência da República. “Aqui na região, muitas pessoas ficaram amedrontadas pelas coisas que ele dizia que ia fazer”, conta Majur, que, por outro lado, recebeu mensagens de apoio em suas redes sociais. “Foi um momento bem difícil, em que a gente teve que lutar, resistir, persistir também aqui na aldeia frente a esse governo. Foi tenso, mas a gente está aqui resistindo.”
Como líder, Majur precisou buscar ajuda externa para receber doações de medicamentos e outros itens de primeira necessidade.
“A maior dificuldade [do período de liderança] foi o governo. Muitas coisas para comunidades indígenas foram cortadas ou reduzidas. O mais importante foram os medicamentos”, conta ela, que se refere principalmente a envios de analgésicos e remédios para o controle de hipertensão. “Nos articulamos bastante para não faltar. A gente correu atrás de doação. Alguns a gente conseguiu por doação, mas outros tinham que ser comprados com receita médica”, lembra.
A gestão da indígena trans na aldeia bororo já caminha para completar dois anos, e deixar o posto ainda não está nos planos de Majur, porque ela considera que sua presença perto dos pais e à frente dos assuntos da aldeia ainda é muito importante. Além disso, conta que ajuda a criar os sobrinhos e até já foi chamada de mãe por alguns deles. “Eu me sentia a supermãe.”
A proteção da família, conta ela, significa adiar outros sonhos, como sair da aldeia para estudar enfermagem e avançar no processo de redesignação de gênero. “Eu quero fazer o meu corpo primeiro. Estou fazendo tratamento hormonal, e, com o tempo, quem sabe, venha a cirurgia. Quero fazer um curso de enfermagem, para poder atuar na saúde e ajudar mais pessoas. E, quem sabe, conseguir formar uma família. Ter uma família, eu, meu esposo, e assim vai”, conta. “Por enquanto, eu estou na curtição, mas eu também tenho essas dúvidas. Será que um dia eu vou ser feliz, ter casamento, ter filhos?”
A lição que a liderança deixa para ela é a importância de olhar para o outro, resume. “Me ensinou a ser uma pessoa humilde, uma líder, e também uma pessoa que olha para o lado das pessoas que mais necessitam, para acolher e abraçar todo mundo. Às vezes, esqueço de me cuidar para deixar as pessoas felizes e alegres.”
Já para a sociedade, ela espera que seu período chefiando a aldeia mostre que pessoas trans devem ter a chance de liderar: “Só temos que ter oportunidade de mostrar o nosso trabalho. Se a gente não tiver oportunidade, a gente vai estar sempre nessa posição de esquecimento e de dúvidas sobre a gente. Vão pensar que a gente não é capaz e que não consegue.”
AgenciaBrasil / Edição: Juliana Andrade